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A Dr.ª Elsa Veloso prestou declarações ao Jornal Expresso num artigo que questiona “Chegámos ao início do fim da privacidade?” Videovigilância, cookies, dados biométricos: Estados e empresas sabem e querem saber cada vez mais sobre nós. Leia aqui o artigo.

Em 1890, o advogado Louis Brandeis foi fotografado numa cena da sua vida íntima e viu a sua imagem publicada numa revista cor-de-rosa. O episódio motivou Brandeis — que viria a tornar-se membro do Supremo Tribunal dos EUA — a escrever um artigo na “Harvard Law Review” em que defendia a inclusão na lei do “direito à privacidade” dos cidadãos, termo inédito até então.

A história é contada pelo constitucionalista Jorge Pereira Silva. “O desafio da privacidade não é novo, mas tem sido acelerado pelas novas tecnologias”, diz, lembrando que, apesar de o direito à proteção de dados pessoais estar consagrado na Constituição (artigo 35º), o principal instrumento jurídico que regula este e outros direitos fundamentais é hoje o Regulamento Geral da Proteção de Dados (RGPD). No entanto, o direito é incapaz de acompanhar o ritmo dos avanços tecnológicos: entre a primeira diretiva europeia sobre proteção de dados e o RGPD passaram-se 20 anos, e nesse período o Facebook ou a Google — cujo negócio assenta na análise e venda de informações dos seus utilizadores — mudaram o mundo.

“O sistema jurídico é pensado para nos proteger do Estado, que historicamente é a grande ameaça às liberdades individuais. Mas agora essa ameaça vem de grandes empresas privadas”, explica Nuno Sousa Silva, advogado especialista em tecnologia e docente na Universidade Católica. Entretanto, os próprios Estados começaram a fazer uso dos avanços tecnológicos. Este mês, o Governo propôs uma nova lei de videovigilância que prevê o uso de bodycams em operações policiais complexas e no controlo de trânsito. Além disso, o diploma autoriza as forças de segurança a captar, aceder e tratar dados biométricos para prevenir ameaças terroristas, recorrendo para isso à inteligência artificial. Se quisermos, é como no filme “Minority Report”, em que Tom Cruise detinha um criminoso antes de o crime ocorrer.

O Governo não esperou pelo parecer da Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) sobre o tema e “não está a seguir a recomendação do Parlamento Europeu sobre video vigilância”, considera Elsa Veloso, jurista especialista em privacidade e proteção de dados. Este mês, os deputados europeus mostraram-se “preocupados com a utilização de dados biométricos para a identificação remota de pessoas”, e a mesma questão foi levantada no plenário nacional: “Estamos aqui à pressa a discutir um diploma que pode ter enormes implicações na invasão de privacidade e nas liberdades individuais a troco de uma noção de segurança que eu discuto que seja tão imediata quanto isso”, disse João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal).

Também este mês o Expresso noticiou que o Portal Base (que publica todos os contratos públicos) divulgava dados pessoais de milhares de cidadãos, violando assim o RGPD — tal como fez a Câmara Municipal de Lisboa ao partilhar informações sensíveis de ativistas. Estaremos a desvalorizar a nossa liberdade, em favor de segurança e conforto, de forma voluntária? E será que nos importamos com isso?

“Damos pouca importância à nossa identidade e estamos a abdicar dela, sim”, responde Pedro Veiga, ex coordenador do Centro Nacional de Cibersegurança. “Alguns fazem-no de forma consistente, outros de forma inconsciente, porque não percebem o impacto que a perda da privacidade pode ter”, aponta. Hoje, é normal os recursos humanos das empresas examinarem as redes sociais dos candidatos antes de decidirem quem contratar, tal como é normal “crianças publicarem fotos despidas nessas plataformas” sem pensarem nas consequências.

“Estamos longe da consciencialização, e o problema de base é a falta de literacia digital”, concorda Nélson Escravana, diretor de cibersegurança do Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores Inovação (INOV), que defende que a escola tem de ter um papel central em colmatar estas lacunas. Pedro Veiga não crê que isso vá acontecer: “Somos pouco hábeis a fazer a gestão da nossa privacidade e temo que esse problema se vá agravar ainda mais no futuro.

Há visões mais otimistas sobre o tema: “Diz-se que a privacidade acabou, mas acho que ela vai sobrevivendo e ganhando cada vez mais adeptos.

Privacidade é sinónimo de liberdade. As pessoas já se recusam a fazer certas coisas que consideram invasivas”, aponta Elsa Veloso. A sua visão otimista do futuro é sustentada nisto: “Se, por um lado, a tecnologia está a evoluir a grande velocidade e a cativar muita da nossa área privada”, também é verdade que a consciência das pessoas para estes temas “está a aumentar”.

Para Nuno Guimarães, presidente da associação Internet Society Portugal, a valorizaçãoda privacidade é variável. “Não sei se os cidadãos querem ter menos privacidade ou não. Depende muito da cultura de cada país.” Quando o Google Street View foi criado, os alemães exigiram que as matrículas dos carros que apareciam nas imagens fossem censuradas. “Mas em outros países o princípio de quem não deve não teme é muito forte”, contrapõe o especialista. E este princípio é problemático, porque “retira áreas de privacidade e liberdade às pessoas”, sublinha Elsa Veloso.

O papel do Estado
Independentemente da perceção dos cidadãos, os Estados — incluindo o português — não têm recursos humanos suficientes para lidar e acompanhar as mudanças impostas pelas gigantes tecnológicas. “Falta mão de obra qualificada, sobretudo em cibersegurança”, diz Nélson Escravana, e “vão continuar a faltar quadros durante as próximas duas décadas”, porque a dependência que a sociedade tem da tecnologia “ainda não atingiu o pico”.

Apesar das necessidades, Portugal não está a fazer o suficiente: “O Estado deveria investir mais na formação de especialistas nestas áreas, para poder garantir os direitos dos cidadãos”, diz Nuno Sousa Silva, até porque o país até está mais avançado tecnologicamente que muitos países europeus. O uso de inteligência artificial e o desenvolvimento de aplicações, por exemplo, caracterizam três dos quatro unicórnios portugueses (empresas avaliadas em mais de mil milhões de dólares).

Só com meios técnicos será possível legislar e regular todas as mudanças no horizonte, tanto no público como no privado. E é preciso bom senso: “O debate deve ser sereno e racional, pois muitas das decisões legislativas e políticas tomadas à pressa depois não são eficazes”, finaliza Nuno Guimarães.

Os perigos da inteligência artificial
Nos últimos anos, o regime chinês tem instalado câmaras de videovigilância equipadas com sistemas de inteligência artificial capazes de ler os dados biométricos das pessoas — ou seja, as características físicas do rosto, mas também os gestos corporais, a voz ou a forma de andar. Este método opaco tem sido usado sobretudo para controlar a população da minoria muçulmana uigur: se o algoritmo detetar um comportamento suspeito ou fora do comum, as pessoas são detidas e enviadas para campos de reeducação, mesmo que não tenham cometido nenhum crime. Devido a estas violações de privacidade, a União Europeia e os EUA já impuseram várias sanções a empresas de tecnologia chinesas. Por cá, a lei de videovigilância proposta pelo Governo não segue a Convenção 108 do Conselho da Europa para a Proteção das Pessoas Singulares, que é vinculativa. Isto porque não define a “fiabilidade e a precisão mínimas do algoritmo utilizado”, nem os critérios para a criação de bases de dados (watchlists) por parte das autoridades policiais, aponta a jurista Elsa Veloso.

Página 25 do Jornal Expresso, ed. 30 de outubro de 2021.

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