Um estudo de uma empresa de cibersegurança revela que 16% dos portugueses consideram aceitável espiar o telemóvel do companheiro. Especialistas alertam para os perigos da falta de consciencialização da sociedade portuguesa.
Joaquim (nome fictício) sentia que algo não estava bem na relação e começou a desconfiar que a namorada pudesse estar a traí-lo. Um dia, a vontade de descobrir o que se passava chegou ao limite e, sem autorização, entrou no telemóvel da companheira, leu mensagens, viu chamadas e passou a pente fino todas as suas redes sociais, até que descobriu o que mais temia. “Quando descobri que ela me traía fiquei devastado. Não conseguia viver com toda aquela incerteza. Sei que não é correto, mas se voltasse atrás, voltava a entrar no telemóvel dela”, admite o jovem.
Segundo um estudo levado a cabo pela empresa de cibersegurança Kaspersky, em Portugal, 16% dos inquiridos concordam com a perseguição digital do companheiro. Os especialistas ouvidos pela CNN Portugal destacam a falta de consciencialização e deixam um alerta: espiar os dispositivos e as redes sociais é crime e a lei prevê pena de prisão.
Depois de ter descoberto que a sua namorada mantinha uma relação com outra pessoa, Joaquim decidiu confrontá-la com as imagens e as mensagens que tinha visto no telemóvel dela, culminando numa “grande discussão”, onde “ela tentou desmentir e desvalorizar” o que ele viu. Porém, o jovem admite que o facto de ele ter acedido indevidamente ao telemóvel da sua companheira nunca foi tema de debate.
“Todos temos direito à nossa privacidade, aos nossos dados pessoais e à sua proteção. O problema é que, neste momento, existe uma lógica de justiça privada nestas situações. Entre casais, parece existir uma quase legitimação à antiga de defesa da honra, fazendo com que as pessoas se encarem como detetives em causa própria, mas espiar o telemóvel do companheiro às escondidas é crime e a lei prevê pena de prisão”, explica o advogado João Massano.
Consciencialização e impunidade
Os especialistas acreditam que Portugal tem um problema de consciencialização e que, tal como Joaquim, muitas pessoas desconhecem que estão a cometer o crime de acesso indevido, que prevê até um ano de prisão. As próprias vítimas nem sempre têm literacia jurídica para conhecer os seus direitos e defenderem-se.
“As pessoas, de facto, não têm consciência de que é crime. A maior parte das vítimas destes crimes nem chega a apresentar queixa, uma vez que considera que o ato acaba por ser justificado, só por ser descoberto algo que prove que o seu comportamento não foi correto”, acrescenta o advogado.
Se, por um lado, a própria vítima não tem consciência de que aquele acesso indevido é crime, por outro, existe uma certa sensação de impunidade, uma vez que muita raramente estes crimes são fiscalizados, refere João Massano, com as instituições a mostrarem-se “incapazes de acompanhar a vertigem dos dias” e reprimir este tipo de comportamentos.
Outro fator a ter em conta é o estigma. A traição é vista pela sociedade com muito mais gravidade do que o acesso indevido a um dispositivo móvel ou redes, o que desmotiva a apresentação de queixa contra o parceiro. “É preciso existir consciência do ilícito, vontade de denunciar e vontade de o combater”, afirma Elsa Veloso, advogada especialista em Proteção de Dados.
Segundo o inquérito da empresa de cibersegurança, 15% dos portugueses acreditam já ter sido vítima deste tipo de abusos por parte do companheiro. A Kaspersky refere ainda que os países mais afetados por estes problemas são o Brasil, a Rússia, a Índia e os Estados Unidos. O estudo realça ainda a existência de uma “correlação entre a violência online e offline” nas relações.
Para fazer queixa, basta ter conhecimento de que o seu companheiro acedeu ao seu telemóvel, dando o testemunho de que as suas informações “foram acedidas de forma ilícita”. Atenção também a possíveis provas que demonstrem que o agressor possui informação que só poderia ter com esse acesso indevido.
“Os infratores costumam deixar rasto e não conseguem guardar a informação que descobriram, acabando por confrontar o companheiro com o que encontraram”, sublinha Elsa Veloso.
O perigo do stalkerware
O mundo está cada vez mais complexo e existem formas mais sofisticadas de espiar dispositivos. É esse o caso do stalkerware. Este tipo de ferramentas permite vigiar de forma oculta e remota a vida digital de uma pessoa no seu dispositivo móvel. Estas aplicações garantem o acesso a praticamente todos os conteúdos de um aparelho infetado: fotografias, mensagens, chamadas telefónicas, redes sociais, localização geográfica e pesquisas na internet.
A lei agrava-se particularmente para quem aceder indevidamente ao telemóvel do companheiro “através de violação de regras técnicas de segurança”, como com a instalação de uma ferramenta específica para vigiar secretamente a outra pessoa.
“Nós temos uma tradição no acesso ilegítimo a dados, que, no meu entender, foi glorificada com o caso de Rui Pinto. Neste caso, os meios justificavam o fim de descobrir os crimes no mundo do futebol, uma vez que a investigação criminal não o estava a conseguir. Para as pessoas, em Portugal, é legítimo violar o computador de alguém, desde que esse alguém tenha cometido um crime”, acrescenta João Massano.
A digitalização da sociedade levou também a um grande aumento da utilização destes programas, um pouco por todo o mundo. O número de vítimas que procura ajuda é cada vez maior e as empresas de cibersegurança estão a detetar um número crescente de aplicações. O facto de serem cada vez mais fáceis e baratas de utilizar está também a agravar o problema. Só no ano passado, de acordo com o relatório “The State of Stalkerware in 2021”, 32 mil pessoas foram afetadas.
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