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PROTEÇÃO DE DADOS
Centenas de jogadores britânicos ameaçam empresas por uso indevido de informação. Em Portugal ainda não há queixas.

Cada jogo de futebol é um banquete com uma diversidade notável de ações. E tudo, ou quase tudo, é rastreado, tratado e arquivado. Sejam ações individuais do futebolista (passes, remates, desarmes, duelos), sejam os locais onde tocou na bola, a velocidade ou a quilometragem que os músculos das pernas gemeram. A ciência até já faz uma espécie de previsão do futuro, recorrendo a milhares de jogadas do passado para dizer o quão provável é uma equipa marcar golo a partir de determinada zona do campo, para calcular a qualidade das oportunidades. Chamam-lhe expected goals (xG), e até Arsène Wenger, qual mensageiro do vanguardismo, usou o termo durante um programa televisivo, em 2020. Mais um sinal de que o futebol vive uma revolução mais ou menos silenciosa.


Estamos na era dos dados, uma espécie de americanização do jogo, um “Moneyball” em cada esquina. Durante os 90 minutos difundem-se informações quase ao segundo. As equipas técnicas controlam cargas e esforços dos futebolistas (graças aos aparelhos de GPS que viajam no peito dos jogadores com coletes vestidos) para tentarem evitar lesões. Os caçadores de talentos deixaram de confiar apenas nos olhos e nas sensibilidades e abriram a porta aos números e algoritmos: mediante as necessidades da equipa, escolhem-se diversas características para o jogador ideal e define-se um perfil; a seguir, as maquinetas dos analistas — plataformas como InStat e Wyscout, por exemplo — oferecem-lhes opções. E só depois começam as observações ao vivo ou por vídeo. Os algarismos ajudam não só os treinadores a escolher o próximo trabalho como auxiliam os futebolistas a optarem por clubes onde melhor possam encaixar. Foi assim que Memphis Depay escolheu o Lyon, em 2017.

Mas esta serena e popular revolução enfrenta agora o primeiro grande teste. Cerca de 900 jogadores e treinadores de diferentes divisões de Inglaterra e Escócia ameaçam avançar judicialmente com uma ação contra empresas de apostas e de gaming e também de organizações que tratam os seus dados e os rentabilizam. Embora o ‘Brexit’ se traduza em eventuais alterações na política de dados no Reino Unido e na aplicabilidade do documento em si, os queixosos colocam-se debaixo do chapéu de chuva do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) e, especialmente, do Artigo 4º. Alegam que aquela informação lhes pertence e, como não consentiram o seu uso ou não foram recompensados, não compete a terceiros lucrar com isso. Esta potencial investida jurídica, que visa uma compensação financeira e assim devolver o poder ao futebolista, tem o potencial de evoluir para uma pastosa bola de neve, já que há milhares e milhares de informações e atributos de jogadores, seja no futebol feminino ou masculino, nas bases de dados dos clubes e de um leque significativo de empresas.


PROCESSO COM PERNAS PARA ANDAR

“O essencial é saber se os dados dos jogadores foram usados legalmente, com consentimento, e se foram processados corretamente. Essas são as questões mais importantes da ação dos jogadores”, explica ao Expresso Chris Farnell, o advogado que defende os interesses do “Project Red Card”, nome dado à ação da autoria do Global Sports Data and Technology Group. Deixando os clubes de fora desta cruzada (embora o próprio advogado admita que estes possam estar a partilhar conteúdos com terceiros), a mira está em três alvos: empresas de videojogos (EA Sports e Konami, por exemplo), de apostas (dados para calcular probabilidades) e aquelas que recolhem e tratam os dados, seja para gerar conteúdo e até calçar artigos na imprensa tradicional, seja para ajudar os clubes na análise à própria equipa e à do rival, ou para identificação e observação de futebolistas. “Os jogadores não estão cientes que esses dados são usados para ganhos comerciais substanciais e que têm sido processados incorretamente. O argumento não é sobre os dados em si, ou sobre uma parte dos dados especificamente. É uma questão de os dados, em geral, estarem a ser usados para ganhos comerciais e os jogadores perderem o controlo”, justifica Farnell, que sinaliza ainda, no caso dos jogos de computador ou consolas, erros que podem ferir a dignidade ou reputação do indivíduo. “O essencial é saber se os dados foram usados legalmente e se foram processados corretamente”, diz Chris Farnell.


Em Portugal, a Comissão Nacional de Proteção de Dados não quis comentar, mas informou que não recebeu qualquer queixa por parte de futebolistas no âmbito do tratamento de dados. Questionada sobre se o processo tem pernas para andar, Elsa Veloso, advogada, consultora e especialista em proteção de dados, é taxativa: “Tem, claro. Pelo menos para chegarem a um acordo. Estamos a falar de dados pessoais, que é informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável. Os dados pessoais têm de ser controlados por cada um dos seus titulares e pertencem a cada um dos seus titulares”, resume. Desde logo, desfaz uma eventual confusão de conceitos. “Não estamos perante direitos de imagem. Temos de distinguir muito bem estes dados pessoais dos que são relativos à imagem. Neste caso, estamos perante coisas muito mais de profiling.” Ou seja, definição de perfis, que está previsto no quarto ponto do Artigo 4º do regulamento: “Qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais que consista em utilizar esses dados pessoais para avaliar certos aspetos pessoais de uma pessoa singular, nomeadamente para analisar ou prever aspetos relacionados com o seu desempenho profissional, a sua situação económica, saúde, preferências pessoais, interesses, fiabilidade, comportamento, localização ou deslocações.” Afinal, o RGPD, em vigor na União Europeia desde 2018, “exige que os dados sejam tratados com justiça e transparência”, alerta Veloso, que dá conta ainda de uma dimensão mais problemática: quando os históricos médicos, de lesões ou de intervenções são comercializados ou partilhados.


“OS DADOS SÃO ESSENCIAIS NO FUTEBOL”
Em conversas informais com dois treinadores, ambos reconhecem que o caminho passa por dar mais poder ao futebolista e que, independentemente do desfecho, este debate faz sentido. “Ia acontecer mais cedo ou mais tarde”, admite um deles, que se detém também a refletir sobre o cenário, mesmo que improvável, de quando um erro pode prejudicar a carreira de um atleta. Imaginemos um defesa central com 1,92 m, mas que erradamente aparece nas plataformas com 1,72 m. Mesmo que tenha métricas muito boas, é pouco provável que seduza os analistas. Uma fonte de uma empresa que trabalha com dados revela que essas situações ocorrem mais ao
contrário — para valorizar o futebolista, alguém próximo dele acrescenta uns pozinhos numa característica. De resto, nos outros dados, de rendimento ou performance, qualquer erro é diluído na imensidade de informação.
“[No futuro] todos os contratos terão de ter cláusulas de RGPD”, alerta a advogada e consultora Elsa Veloso.

Ao Expresso, Chris Farnell defende que as empresas de scouting ou de análise “não foram autorizadas a ter esses dados” e usam-nos de forma indevida. “Há violações significativas”, avisa. Tiago Estêvão, um analista de uma equipa do campeonato italiano, admite que o tema ainda é pouco discutido no meio. “Assumo que as pessoas que lideram empresas que fazem a colheita de dados — Opta, StatsBomb, Wyscout, InStat — tenham ou já tiveram de lidar com essa questão, mas nós, que trabalhamos com os dados que foram coletados por outrem, não lidamos muito com isso. Não invalidando o sentimento dos jogadores que estão neste processo legal, aqueles com quem me cruzo e mostram interesse na utilização de dados nunca o abordaram dessa perspetiva”, reconhece. É uma visão referida em vários artigos sobre o tema. Aparentemente, os futebolistas não são contra a análise de dados, até porque veem neles uma ferramenta para melhorar o rendimento. Falta saber, apesar disso, caso
este projeto de ação judicial tenha sucesso, se os desportistas de elite se juntam ao movimento. É uma história que terá certamente a atenção de outras modalidades.


E se fosse fechada esta torneira de informação, como seria afetado o trabalho do analista num clube? “Os dados são essenciais hoje em dia. Numa primeira fase, para fazer a pré-seleção — de longe a utilização mais importante dos dados — e passar de listas de 100 nomes para 20”, continua Estêvão. “Depois, têm relevo também como uma perspetiva extra, somando-se aos tão importantes aspetos a considerar como vídeo, jogo ao vivo, personalidade, parte económico-financeira, etc., num momento mais avançado do processo. O meu trabalho seria bastante impactado e mais ainda o dos meus colegas de departamento que se focam mais em data analysis. Eu enquadro-me mais na transição dos dados para o vídeo/contexto tático e vice-versa. Finalmente, quem sairia mais afetado seria mesmo quem trabalha em clubes de dimensão ligeiramente menor, que partem de uma lista potencial de alvos maior e que têm menos elementos no staff. Nesse contexto, o bom trabalho com os dados dá uma vantagem ainda maior, simplificando o processo e reduzindo o risco nas contratações.” Num clube como o Manchester United, por exemplo, os scouts e analistas espalhados por 30 países observaram cerca de 13.800 jogos em 2018 e magicaram qualquer coisa como 36 mil relatórios, escreveu recentemente “The Athletic”.


LIMBO E FUTURO
Segundo Elsa Veloso, se os contratos dos jogadores não têm cláusulas sobre dados, a matéria não está regulada (“não havendo contrato, tem de haver consentimento”), ficando esta questão num “limbo”. A advogada aponta para o horizonte: “É um tema importante. Não só pelo interesse inglês, vai clarificar a situação em Portugal e
chamar à atenção dos jogadores. Todos os contratos terão de ter cláusulas de RGPD”, antecipa, desabafando que esse cenário “já devia acontecer desde 2018”. Por cá, a Liga Portugal terá alegadamente um acordo com uma empresa para recolha de dados, informação que a entidade não confirmou. Já Chris Farnell garante que a ação no Reino Unido está mesmo em andamento (já foram enviadas cartas a 17 grandes empresas das 150 sinalizadas) e não coloca de parte uma batalha nos tribunais: “É possível, estamos preparados para isso.”

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