Delimitando o tema, pretende agora o Governo impor a utilização pelos cidadãos da aplicação STAYAWAY COVID, não apenas em contexto laboral, mas também escolar, académico, nas forças armadas e nas forças de segurança, e, ainda, no conjunto da Administração Pública.
Ao tomar conhecimento desta peregrina iniciativa, saltou-nos à memória, depois de um sorriso, a máxima trazida a lume pela Apple, no âmbito dos seus propalados esforços em afirmar a privacidade, quando afirmou que “what happens on your iphone, stays on your iphone”.
Quem diz iphone diz qualquer outro dispositivo, seja qual for o sistema operativo de base.
A questão de fundo resulta, precisamente, da citada frase: o telefone de um cidadão é por via de regra algo privado, e qualquer verificação do mesmo não pode deixar de ser feita sob a égide de autoridade judicial, no âmbito de processo próprio.
Antecipam-se, pois, diversas iniciativas contra esta intenção governamental, tendo já a Associação D3- Defesa dos Direitos Digitais, assumido a intenção de agir judicialmente, classificando a ideia de “grotesca”.
Em causa estão duas questões chave: desde logo o caráter voluntário da aplicação, aspeto aliás que levou à sua aprovação, que agora se pretende tornar obrigatória, parecendo o Governo querer decretar, em contexto, mais uma aplicação (quase) nativa, que devemos instalar e que, até ver, dela não poderemos prescindir. A inversão de um princípio de liberdade, assente numa escolha individual, é aqui trucidado politicamente.
Ora, sabendo-se que, pese embora o número de downloads, já acima de um milhão, a aplicação não tem demonstrado qualquer eficácia relevante, ao que não será alheia a sua própria burocracia interna de funcionamento, questiona-se o que se esconde por detrás desta iniciativa política.
Depois, e bem mais importante, a privacidade dos cidadãos, que passam a ser obrigados, sob pena de avultada coima, a proceder à instalação de uma aplicação nos seus telemóveis,, contrariando-se tudo o que é aceitável no plano jurídico e ético. O que se segue a partir daqui? Vamos ser obrigados a instalar publicidade nos nossos automóveis a exigir a instalação da aplicação, por determinação governamental?
Recordemos o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV, quando afirmou que “.. generalizar o uso de aplicações digitais móveis como uma estratégia nacional para controlar a transmissão da infeção na comunidade pode associar efeitos perversos, se afastar do planeamento das intervenções sanitárias os grupos sociais onde se reconhecem diversas vulnerabilidades, designadamente os que não são portadores de equipamentos tecnologicamente avançados nem capazes de fazer deles o uso pretendido para fins sanitários. – As aplicações digitais móveis são interdependentes das caraterísticas dos telemóveis, o que acentua as desigualdades associadas à baixa literacia digital e à condição económica e social dos cidadãos, factos que constituem uma objeção ética fundamental para se recomendar a sua utilização com caráter obrigatório.
Deve, por isso, ser garantida proteção relativamente a qualquer tipo de pressão social, nomeadamente de autoridades públicas, que condicione os cidadãos para adotar aplicações móveis de rastreio de contactos, responsabilizando-os por uma estratégia global de saúde pública, que seria sempre desproporcionada para esse fim.”
Aguardemos com redobrado interesse o efeito prático das intenções governamentais e, claro está, a opinião da CNPD e recordemos Pessoa:
“A liberdade é a possibilidade do isolamento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo”
David Barata
Outubro 2020