A opinião de David Silvério, Legal Consultant na DPO Consulting ao Dinheiro Vivo.
Já dizia o velho ditado, “casa roubada, trancas à porta”, pelo que, “mais vale prevenir que remediar”. Tão antigos como atuais, estes dois provérbios simbolizam a preocupação que cada um de nós tem com os seus bens, designadamente, com o seu veículo, seja contra roubo ou furto, seja para efeitos de prova no âmbito de um acidente de viação. Neste sentido, têm sido levantadas dúvidas sobre a utilização das chamadas dash cams, ou seja, câmaras de videovigilância colocadas na parte interior de um veículo automóvel, para captação de imagens na via pública com a finalidade da segurança de pessoas e bens.
Segundo a Comissão Nacional de Proteção de Dados é proibida a utilização destes equipamentos, tendo em conta o art.º 19.º da lei nacional (lei n.º 58/2019, de 8 de agosto) que executa em Portugal o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados: “as câmaras não podem incidir: a) nas vias públicas, propriedades limítrofes ou outros locais que não sejam do domínio exclusivo do responsável, exceto no que seja estritamente necessário para cobrir os acessos ao imóvel”. Portugal, em conjunto com a Áustria e o Luxemburgo, fazem parte dos países onde é proibida a captação de imagens através destes dispositivos, ao invés de países como a França, Bélgica, Alemanha, Noruega ou Suíça, onde o seu uso é permitido mediante determinadas condições e, em contraponto com a Bósnia-Herzegovina, Dinamarca, Itália, Malta, Países Baixos, Sérvia, Espanha e Suécia, em que é permitida a sua utilização sem qualquer condição.
Pese embora a CNPD se tenha pronunciado em sentido negativo, certo é que outras vozes se levantaram duvidando da posição da autoridade de controlo. Em primeiro lugar, o RGPD aplica-se ao tratamento de dados pelas pessoas coletivas, não se aplicando às atividades domésticas e privadas das pessoas singulares. Sendo a lei nacional a lei de execução do RGPD, surgem dúvidas sobre o mérito da aplicação do art.º 19.º, que fundamenta a sua proibição. Por outro lado, o uso de dash cams apenas seria ilícito se dele se fizesse um uso comercial ou atentado contra a honra e a dignidade da pessoa humana, sem qualquer consentimento ou fundamento acrescido do respetivo direito de informação aos titulares.
O direito à imagem faz parte do “catálogo” de direitos e liberdades de cada cidadão. O art.º 79.º do Código Civil refere precisamente que ninguém pode reproduzir, expor ou lançar para uso comercial o retrato de outra pessoa sem o seu consentimento. No entanto, o mesmo artigo refere a desnecessidade do consentimento, quando a reprodução da imagem venha enquadrada na de lugares públicos ou na de factos de interesse público, que hajam ocorrido publicamente. A lei penal prevê no art.º 199.º pena de prisão ou multa, em casos de gravação e utilização de imagens, sem consentimento, de palavras não destinadas ao público ou captação e utilização de fotografias ou filmagens de uma pessoa, mesmo em eventos onde tenha participado. Contudo, tem sido unânime nos tribunais portugueses a valoração de imagens captadas através de câmaras de videovigilância por particulares na via pública, enquanto prova da prática de um ilícito criminal, mediante uma análise casuística, a salvaguarda do núcleo duro da vida privada da pessoa e cujo tratamento não incida sobre os chamados dados sensíveis. Face aos argumentos supra, entendemos que a liquidez de uma solução passará por um equilíbrio entre a segurança e a privacidade.
Apesar de não se aplicar o consentimento neste caso, dever-se-á ter em atenção o interesse legítimo do condutor em garantir a sua segurança e a do seu veículo, mas também, a privacidade de quem circula na via pública e pretende manter discreta a sua vida. A utilização de filtros e formas de pseudonomização das imagens apenas desbloqueadas pelos fabricantes em caso de processo e ordem judicial poderia configurar uma alternativa enquadrada no âmbito de licitude exigida. A proibição da publicação das imagens na internet, a obrigação de entrega às entidades policiais ou a obrigação de apagamento das mesmas no prazo de 5 dias, configuram também soluções razoáveis à semelhança do que acontece em países como a França e a Bélgica. Não esqueçamos que o desenvolvimento tecnológico galopante dos gigantes da tecnologia automóvel, através da incorporação de origem nos automóveis de câmaras de videovigilância para efeitos de segurança de pessoas e bens, é hoje uma realidade concreta que urge ser legislada e analisada com o máximo cuidado. Se, por um lado, pretendemos estar mais seguros, por outro, pretendemos que a nossa privacidade se mantenha incólume. Para tal, é necessário encontrar o ponto de equilíbrio entre a segurança e a privacidade, enquanto direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, sem afetar um e o outro, mas garantindo sempre os nossos direitos enquanto cidadão, mas também o nosso descanso e bem-estar.
Pode consultar o artigo na integra aqui.